Aspectos Práticos da Terapia Nutricional no Diabético

Introdução:

Diabetes mellitus é clinicamente e geneticamente um grupo heterogêneo de síndromes caracterizado por intolerância à glicose. Isto ocorre porque as células beta do pâncreas, ou não produzem insulina, ou a produzem em quantidade insuficiente, ou ainda não há utilização adequada da insulina pelos tecidos alvo. A incapacidade do organismo em metabolizar a glicose em energia leva, a curto prazo, ao acúmulo de glicose no sangue e urina, e a, longo prazo, a lesão celular, resultando em complicações macro e microvasculares, que se traduzem por doença renal, retinopatia, neuropatia e doença cardiovascular.
O Diabetes mellitus é o síndrome endócrino mais comum em humanos e, segundo a literatura, a quarta causa de morte por doença nos Estados Unidos.
Sua frequência é alta nos Estados Unidos (6% da população) e no mundo (100 milhões). De maneira geral, 50% dos diabéticos desconhecem seu diagnóstico.
Há vários tipos de Diabetes e outras categorias de metabolismo anormal de glicose:

Diabetes tipo I:

5 a 10% dos casos de Diabetes são do tipo I, ou insulino-dependentes, que geralmente adoecem antes dos 30 anos (Diabetes Juvenil). De início geralmente súbito, é causada por deficiência de insulina, seja por componente genético, seja por fator auto imune, este desencadeado por infecções virais, elementos químicos, etc. (encontram-se anticorpos anti insulina endógena ou anti células das ínsulas pancreáticas).

Diabetes Tipo II:

Corresponde à imensa maioria dos casos (90 a 95%). Também chamado de não insulino dependente. Associa-se a história familiar, obesidade, e idade avançada. Aqui, dois são os defeitos principais: diminuição da sensibilidade dos tecidos à insulina(resistência à insulina) e alteração na função das células beta do pâncreas (liberação retardada ou inadequada de insulina). Tais alterações resultam numa lenta e deficiente supressão da produção de glicose pelo fígado e na redução da captação de glicose pelos tecidos.
.O Diabetes Tipo II aparece geralmente após os 40 anos de idade. Calcula-se que 40% dos doentes com Diabetes Tipo II lance mão da insulina para o seu controle. Relaciona-se com morbidade e mortalidade relevantes.

Intolerância à Glicose:

Aqui os níveis de glicemia são elevados, mas não o suficiente para considerarmos o indivíduo como portador de Diabetes tipo I ou II.. Ocorre em 11% da população, e, para alguns é precursor do Diabetes tipo II. Desenvolvam ou não a doença, tais indivíduos tem risco aumentado para alterações macrovasculares.

Hiperglicemia em doentes agudamente graves

A prevalência de hiperglicemia em UTI é de 70 a 80% e a de Diabetes mellitus é de 30%.
A resposta endócrina e celular ao trauma “sensu latu” (infecção, trauma propriamente dito, agressão cirúrgica, etc.) leva a uma liberação concomitante de glicose, ácidos graxos e amino ácidos na circulação como fonte de carbono que será oxidado a energia. Portanto, ao mesmo tempo que temos abundância de substratos energéticos circulantes existem limitações na utilização de cada um deles. A hipeglicemia é muito frequente nesta população, tanto em função da resposta neuro endócrina celular quanto da utilização de uma série de drogas hipeglicemiantes, muito comuns no tratamento do doente grave de UTI,como: corticosteróides, beta boqueadores, diuréticos tiazídicos, difenilhidantoína e morfina em doses altas.
Os doentes de UTI previamente diabéticos tendem a ter mais hiperglicemia com o estresse já que não tem reposta secretagoga adequada à adrenalina e à concentração de glicose no plasma.

1. Diagnóstico de hiperglicemia.

Em UTI sempre devemos confirmar a hiperglicemia em duas medidas distintas e os valores considerados são menos rígidos, já que o doente agudamente grave tende a ser mais hiperglicêmico. Consideramos:
Hipoglicemia: menor do que 100 mg%.
Níveis seguros, porém baixos: 100 a 150 mg%.
Ideal: 150 a 200 mg%.
Hiperglicemia leve: 200 a 250 mg%.
Hiperglicemia moderada: 250 a 350 mg%.
Hiperglicemia grave: superior a 350 mg%.

2. Tratamento

Nos pacientes de Terapia Intensiva todos os esforços concentram-se no controle metabólico. Importantes variáveis devem ser consideradas: a quantidade e qualidade da fonte calórica, o tipo e dose de insulina usados no período pré hospitalar e a via de administração da dieta.
As consequências de um controle não adequado são agudas e crônicas. As agudas, mais relevantes na UTI, incluem hiperglicemia com todos os seus efeitos indesejáveis como distúrbios hidro-eletrolíticos pela poliúria, dificuldade de cicatrização de feridas, aumento importante dos índices de infecção. Podem ocorrer ainda episódios de hipoglicemia potencialmente muito perigosos na população que requer intervenção medicamentosa (insulina).
As crônicas implicam na progressão de patologias como as alterações vasculares macro e micro, retinopatia, nefropatia e neuropatia diabéticas, mas não são importantes no controle agudo do doente grave de UTI.
Nas Unidades de Terapia Intensiva vários trabalhos científicos mostram maior índice de infecção em indivíduos diabéticos ou “intolerantes” com glicemia superior a 200 mg%. Essas infecções mais frequentemente são de partes moles, urinária, otites externas e pulmonares, que respondem globalmente por 24,6% das complicações perioperatórias precoces (até 48 horas da cirurgia). A hiperglicemia leva a 2 vezes mais infecções globais e 5 vezes mais infecção de catéteres centrais. Os mecanismos de favorecimento às infecções parecem depender das alterações vasculares que dificultam o fluxo sanguíneo e a chegada de nutrientes às células de defesa, da neuropatia que diminui as defesas cutâneas e de uma ação direta acarretando aumento da permeabilidade capilar, menor opsonização pela glicação da fração C3 do complemento, menor função linfocitária e disfunção de polimorfonucleares. Ocorre ainda diminuição da quimiotaxia, fagocitose e poder bactericida intracelular, aumento da adesividade, com ativação constante inespecífica e produção de radicais livres. A presença de cetoacidose sabidamente amplifica os efeitos imunossupressores.
Nos pacientes com trauma crânio encefálico a freqüência de hiperglicemia é alta (48%) e se correlaciona diretamente com piora do prognóstico neurológico por produção local de lactato, hiperosmolaridade, redução de fluxo sangüíneo e produção de radicais livres.

3.1. Terapia Nutricional

As recomendações dietéticas para diabéticos a partir da ADA (American Diabetes Association), em 1986 era a de uma dieta composta por 10 a 20% do VCT sob a forma de proteínas, 55 a 60% sob a forma de carbohidratos e menos do que 30% sob a forma de gordura, para evitar alterações lipídicas e doenças cardiovasculares tão freqüentes nessa população. No entanto, novas pesquisas sobre os efeitos de regimes dietéticos levaram a mudanças nas recomendações que hoje baseiam as proporções de carbohidratos e gordura da dieta de acordo com o controle metabólico individual e não limita a ingestão de gordura desde que seja rica em ácidos graxos monoinsaturados. Há limitação de ácidos graxos saturados e poliinsaturados na dieta total.
Em se tratando de fórmulas líquidas de dieta, o comportamento metabólico pode ser diferente, pois, a absorção de carbohidratos é muito mais rápida do que na dieta sólida, levando a hiperglicemia pós prandial com mais facilidade. Da mesma forma, enquanto na dieta sólida é mais difícil controlar a fonte de gordura (pelos hábitos alimentares ocidentais), a dieta líquida permite uma formulação mais próxima das recomendações mais atuais, aumentando o teor calórico sob a forma de gordura, mas, ofertando predominantemente a gordura monoinsaturada e restringindo-se colesterol e gordura saturada.
Trabalhos estudando tais formulações tem demonstrado melhor controle glicêmico sem prejuízo do controle lipídico, ou seja, mantendo níveis de lípides séricos e triglicérides dentro dos parâmetros desejáveis.
Na UTI, como em outras áreas do hospital, a terapia nutricional deve ser a enteral, mesmo que seja parcialmente, a menos que a via gastrointestinal não esteja utilizável. O uso da dieta enteral favorece a evolução do doente, modulando a resposta inflamatória, contribuindo para a função da parede intestinal, tanto no tocante à translocação bacteriana quanto à preservação do tecido linfóide e nervoso intestinal, fundamentais para a imunidade local e sistêmica.
A utilização de dietas isentas de sacarose, com maior teor lipídico (gordura monoinsaturada) pode facilitar o controle glicêmico, mas exige concomitantemente o controle de níveis de triglicérides séricos, pelo menos semanal. A administração contínua parece auxiliar o controle glicêmico, podendo-se usar pausa noturna ou não.
Um dos obstáculo mais freqüentes à administração de dieta enteral a diabéticos em UTI é a paresia gástrica, principalmente quando outras situações se associam como sedação com opiáceos, trauma crâneo-encefálico ou outras lesões do SNC, etc. A redução da velocidade de infusão da dieta ou a mudança na administração para contínua ou o uso de pró cinéticos pode minimizar o problema, mas, na imensa maioria da vezes o posicionamento da sonda pós pilórica resolve a. questão. É excepcional a necessidade de drenagem concomitante do estômago através de Sonda NasoGastroEnteral, o que ocorre mais freqüentemente em situações de íleo gástrico mais importante como nas pancreatites necrohemorrágicas.
A dieta por via pós pilórica deve ser obrigatoriamente administrada por via contínua, de preferência através de Bomba de Infusão.
A diarréia pode funcionar como outro obstáculo à terapia nutricional enteral; do diabético, favorecida pela neuropatia esplâncnica e pelo uso de medicações como antibióticos, que reduzem a flora bacteriana, distorcendo a metabolização de nutrientes como as fibras polissacarídeas que deixam de ser transformadas em ácidos graxos de cadeia ultra curta (valérico, palmítico, butírico)- importantes na nutrição da parede colônica- passando a agir como solutos osmóticos.
Uma vez descartada a etilogia infecciosa e inflamatória (por exames como cultura de fezes, pesquisa de toxina de Clostridium difficile, endoscopia quando necessário, etc.) que exigem tratamento específico, a diarréia do diabético pode ser controlada mudando-se a administração para contínua, com velocidade inicialmente menor, tateando-se a tolerância do paciente. Outra possibilidade é a escolha de outra fórmula com menor teor lipídico ou menor osmolaridade, desde que não prejudique o controle metabólico. A adição de fibras ou o uso de dietas ricas em fibras pode auxiliar, em casos particulares, tanto a nutrição do colon (quando houver flora bacteriana suficiente para sua metabolização) quanto a absorção mais lenta e regular do carbohidrato ingerido. O uso de medicação antidiarreica pode trazer bons resultados.
Nos doentes em que a meta nutricional não pode ser atingida apenas através da via enteral, lança-se mão da via parenteral (NP). Nestas circunstâncias, principalmente quando há hiperglicemia prévia, sugere-se, inicialmente (primeiras 72 horas até estabilização) o uso de uma NP hipocalórica, contendo de 150 a 200g de glicose ao dia no diabético tipo II ou no “intolerante” e 100 a 150g de glicose no diabético tipo I. O restante das calorias deve ser dado sob a forma de lípides, respeitando-se o limite de infusão máximo (1 a 1,5g/kg/dia) e lançando mão de emulsões contendo 50% de triglicérides de cadeia média, que melhoram a tolerância, e 10% de ácidos graxos ômega 3, quando disponíveis (não disponíveis ainda em nosso país). Tais ácidos graxos competem com o ácido araquinidônico, dando origem a mediadores inflamatórios mais brandos e menos imunossupressores modulando a resposta inflamatória e associando-se a uma melhor evolução. A carga proteica não sofre restrições (1,5 a 2g/kg/dia), desde que tolerada pela função renal. (uréia inferior a 150mg%).
Seja qual for a via escolhida para a terapia nutricional, mas, mais importantemente na via EV, é imperativa a monitorização eletrolítica e ureica diária e o controle lipídico (triglicérides até 300mg/dl) e de enzimas hepáticas (risco de esteatose hepática) 1 a 2 vezes na semana até estabilização, quando então podem ser espaçados.
O controle glicêmico deve ser feito, através de glicemia, ou glicosimetria tantas vezes quantas as necessárias, dependendo da instabilidade metabólica do doente em questão, procurando-se manter os níveis entre 180 e 200 mg%.

3.2. Administração de insulina.

No paciente de UTI, a terapia da hiperglicemia, uma vez controladas outras variáveis, é sempre a insulinoterapia, dando-se preferência à Insulina Regular Humana, que tem um tempo de ação curto, facilitando o controle. A literatura é unânime em considerar a via SC a mais adequada, porém, no doente de UTI, muitas vezes com instabilidade hemodinâmica e acidose, a via de preferência é a EV.
Não existe consenso quanto à maneira de administração da insulina no diabetes tipo II. Tanto a administração em “bolus” quanto a contínua mostraram resultados semelhantes. Já no diabetes tipoI há consenso de que a administração deva ser contínua. No paciente com hiperglicemia por estresse, a necessidade de tratamento restringe-se principalmente quando do uso de NP, trauma crânio encefálico, poliúria acima de 1,5 a 2 ml/kg/hora, AVC isquêmico ou hemorrágico e no PO de revascularização do miocárdio. Aqui, o tratamento deve ser menos agressivo e a via preferencial é EV em “bolus”; exceção deve ser feita quando do uso de NP, onde muitas vezes se requer administração contínua EV.
Cerca de 73% dos pacientes que usam NP em UTI necessitam de insulina, destes, 54% são diabéticos previamente e 46% se tornaram hiperglicêmicos na UTI.
Há também a possibilidade de adição de insulina simples à solução de NP, no momento de seu preparo. O cálculo inicial da insulina necessária deve ser feito baseado nas necessidades de insulina prévias de acordo com a carga calórica normalmente ingerida. Assim, um doente que recebia 40 U de insulina para 1800 cal, deverá receber 20 U para 900 cal. Esse cálculo inicial deve ser ajustado em função da tolerância do indivíduo. Quando os requerimentos prévios de insulina não são conhecidos, usa-se 0,1 U de insulina por grama de glicose oferecida. A complementação de insulina simples por via EV ou SC pode ser necessária apesar da insulina na NP. Nesse caso, no dia seguinte, aproximadamente 2/3 da dose total requerida de insulina deve ser acrescida à NP. Geralmente, um paciente em NP requer o dobro da quantidade de insulina tomada no regime pré hospitalar.
O controle glicêmico deve ser feito no mínimo a cada 6 horas, inicialmente, seja por glicemia ou glicosimetria. Em situações de grande instabilidade metabólica e onde o uso de insulina EV contínua é indicado, esse controle pode ser tão frequente quanto a cada 2 horas, até estabilização, sob risco de se desenvolver hipoglicemia. Pelo mesmo motivo, na situação de Nutrição Enteral e insulina EV contínua, deve-se abolir a pausa noturna. Quando usamos insulina EV contínua, a dose total diária deve ser dividida em alíquotas correspondentes a 4 horas de infusão para se evitar a inativação do produto.
Já a hipoglicemia, quando usamos NP acrescida de insulina, é ocorrência rara porque parte da insulina adere aos frascos e a dose recebida realmente é menor do que a estimada.
A insulina SC pode ser introduzida com a estabilização hemodinâmica e correção da acidose.
Geralmente, pacientes com NP se beneficiam da via EV de insulina enquanto aqueles com nutrição enteral (NE) da via SC.
Após estabilização completa das necessidades diárias de insulina e administração das necessidades nutricionais totais, pode-se, na NE, lançar mão da insulina de longa duração.

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Autor: Dr. Paulo Cesar Ribeiro
Adaptação: IMeN
Maiores detalhes: www.nutricaoclinica.com.br
Projeto PAE ( Laboratório ABBOTT)
Perguntas e Resposta em Nutrição Clínica ( Ed. Sarvier)